Brasil: Resistências d’Artistas na noite fascista

O Brasil representa hoje a perfeita distopia de um Estado falido moralmente, governado e presidido pela extrema-direita, por Jair Bolsonaro. Com a finalidade de melhor descrever e compreender o que se passou recentemente neste país de dimensão continental, reuni o testemunho da actriz, professora de teatro, militante pelos direitos das mulheres e expatriada brasileira em França, Angélica de Almeida, e a expressão artística de Ailton Santana, originário e habitante de Correntes, a 300 km de Recife, no Estado de Pernambuco, Brasil. Esta entrevista teve lugar antes do acto racista –o espancamento até à morte de um homem negro, João Alberto Silveira Freitas– perpetrado por um agente policial militar e um agente de segurança num supermercado « Carrefour » em Porto Alegre, no Estado de Rio Grande do Sul, no dia 19 de Novembro de 2020, e antes da derrota eleitoral de Donald Trump nos E.U.A.

Paulo Correia : A minha primeira pergunta é a seguinte : qual é a sua visão actual sobre o Brasil ?

Angélica de Almeida : A minha visão actual é muito preocupante, muito negativa, porque hoje a gente não vê muita saída. A única saída, é que o presidente [Bolsonaro] seja destituído, com « impeachment », ou que ele saia por ele mesmo, que o povo saia enfim para a rua. Então a gente não tem outra solução, ele não vai melhorar e por enquanto, a coisa não está caminhando nesse sentido.

Tem muita indignação -eu não sou a única- muitos brasileiros  estão indignados, até muitos brasileiros que votaram nele, mas isso continua não sendo suficiente, porque ele continua no poder, mesmo sabendo, que o mundo inteiro sabe das coisas gravíssimas que estão acontecendo no Brasil, que em país nenhum seriam suportáveis.

Está falando do fascismo ?

Estou falando do fascismo personificado no presidente da República, claro. Na realidade ele é o resumo de tudo o que há de mais asqueroso numa pessoa só. Ele conseguiu ser tudo isso numa pessoa : racista, fascista, misógino, ignorante, uma pessoa extremamente corrupta e colocaram essa aberração na presidência.

Isso leva à minha segunda questão : como foi possível chegar a este estado de coisas e eleger alguém assim ?

Nem eu sei ! Na realidade, quando ele ganhou a eleição, foi como se para mim ficasse claro, a traição do meu próprio país. Há mais de vinte anos que deixei o Brasil, então quando eu parti, eu acreditava num país em que as pessoas eram mais humanas, em que as pessoas pensavam umas nas outras, claro. Como em todos os países, existem pessoas egoístas, mas eu não pensava que fossem tantas, que houvesse tanto racismo, que tivesse tanta gente que pregava a desigualdade a esse ponto.

Votaram em um homem que na realidade falava abertamente de morte, de « matar trinta mil », que nunca achou que a ditadura foi algo ruím. Então quando você ouvia esse cidadão falar, você na época, imaginava que ele era louco e que era impossível que alguém no Brasil, mesmo que detestasse o Partido Trabalhista [PT]  -que é o nosso maior partido de esquerda, o partido do Lula-, votasse nesse homem.

Eles criaram uma espécie de ódio contra esse partido e muita gente acabou votando no Bolsonaro, quer dizer, votaram na pior opção e isso foi terrível, porque essa pior opção, foi o que fez com que hoje a gente veja que o Brasil tem um monte de seres horríveis, cheios de ódio, saídos do esgoto mais profundo. O Brasil hoje não dá mais para me espelhar.

Eu achava que a gente poderia ser negro no Brasil, onde pobre não seria estigmatisado, em que a gente poderia ser gay no Brasil, porque existe no país uma mistura e um sincretismo religioso -eu pensava que a gente poderia ser tudo isso, mas na realidade, isso hoje não é possível.

E como é que você explica parte do eleitorado que foi tirado da miséria pelas medidas e pela ação governativa do PT -Partido dos Trabalhadores- e do Lula da Silva,  ter votado em Bolsonaro ? Como é que comenta este facto ?

As razões são mútiplas : 1- a desinformação, principalmente através do grupo Globo, que nunca escondeu o ódio que tem pelo PT, sendo que a cadeia televisiva da Globo foi uma das entidades que apoiou a ditadura militar [1964-1985] -entretanto o grupo já veio se desculpar por ter apoiado a ditadura.

No entanto os governos do presidente Lula [2003-2011], nunca retiraram os apoios do Estado a esse grupo mediático.

Não, porque o Lula achava que deveria haver diálogo com pessoas da direita, para um entendimento nacional, para tirar o povo da miséria, num esforço com todos os Brasileiros. Mas a direita funcionou sempre como uma cobra infiltrada na Globo e  com o Fernando Henriques Cardoso [FHC], que no segundo turno das eleições presidenciais disse que não iria votar. Como é que alguém como FHC pode ter dúvida em não votar na opção contra o Bolsonaro ?

“Faces de um líder” de Ailton Santana

2- votaram porque o patrão mandou votar, porque o Brasil vota de cabresto, porque o empregado vê o patrão com carro bonito e cheio de dinheiro, porque ele é « doutor » e que chega e diz « vote assim, vote em tal ». É um Brasil de novelas da rede Globo, que não desenvolve um espírito crítico, é o Brasil em que você chega e diz que o PT é corrupto, ou que a Dilma Rousseff fez pedalada fiscal / maquilhagem das contas públicas, e eles pegam isso como verdadeiro e não vão procurar a verdade.

Agora com a praga evangelista que chegou por meio dos EUA, onde Bolsonaro é considerado como messias, o pastor diz para votar nele e então votam -mistura bombástica entre religião e « fake news ». O Bolsonaro e sua cúpula evangelista brincou com tudo isso, com essa crença, com o dinheiro, com os patrões. Ele é pior que incompetente -com mais de 30 anos como deputado, nunca fez nada, tal como os filhos, que nunca tiveram que trabalhar realmente a não ser trabalhar em política, nunca apresentando um projeto válido para o país. As pessoas que o colocaram no poder dizem, « ele vai ser incompetente mas vai fazer o que queremos, assinar leis, decretos », mas deram um tiro no pé porque ele é pior do que se imaginava.

Isto numa altura em que descobrimos que o FBI norte-americano ajudou a montar a « Lava Jato ».

Na realidade, isso foi dito muito antes pelo PT e denunciado por alguns jornalistas, antes da destituição da Dilma Rousseff [mulher política do PT que ocupou o cargo da presidência da República de 2011-2016], que já haviam falado, de que o Moro tinha ido aos EUA e passado tempo com pessoal do FBI. Mas isso já foi mais do que confirmado, mas o mal está feito, com a saída da Dilma. O juíz Sérgio Moro [ministro da Justiça de Bolsonaro, até ter pedido a demissão do governo em Abril de 2020], que numa entrevista recente disse que o Lula sempre foi para ele um grande adversário.

“Justiça no Brasil, a lenda” de Ailton Santana

Ora, um juíz na sua ação tem de ser imparcial -e dizendo isto, Moro invalida por completo a operação « Lava Jato », que acabou parindo Bolsonaro. Para mais, a « Lava Jato » permitia fugas de informação, utilizadas na Globo, levando pessoas a revoltar-se contra a Dilma e o governo do PT, com pessoas manifestando nas ruas contra as pedaladas fiscais, que muitos nem sabiam o que era. Só que a pedalada fiscal foi uma jogada enorme que levou à substituição da Dilma pelo seu vice-presidente Michel Temer, da direita. Hoje em dia já existem muitos documentários sobre este impeachment, sobre esta jogada, que levou o país a uma desgraça, e que colocou a direita no poder, aquela direita nojenta, que pensavamos não ter mais.

Qual é o sentimento geral que você encontra nas comunidades brasileiras no exterior ?

Por participar em vários colectivos, criados logo na parte do « Ele não » e depois da eleição de Bolsonaro, é uma sensação de nojo muito grande, nojo a cada notícia que sai, é asco a cada notícia sobre escândalo, com ele no poder. É isso que para a gente é impressionante. Houve mesmo uma época em que as pessoas estavam num estado de letargia, que se deram por vencidas, sem coragem para lutar.

Aqui na França, ninguém deixa passar nada, as pessoas vão para a rua, existem greves e movimentos sociais. Embora comece a existir uma certa mobilização no Brasil, se enfia aberrações goela abaixo do povo e a única coisa que a gente faz são « memes » nas redes sociais. Então as pessoas riem, riem da própria desgraça. Não é o do povo que é desgraçado mas é o próprio povo que caiu em desgraça. Então não tem graça mesmo, pois já tinham quebrado tudo -entendeu ? No Brasil, embora as pessoas saiam um pouco, está todo o mundo vendo futebol…é muito estranho.

Você encontra nas comunidades brasileiras do exterior, a mesma clivagem pró e contra Bolsonaro ?

Sim, mas tem mais contra Bolsonaro, apesar de existir ainda a vergonha. No Brasil, os poucos apoiantes assumidos de Bolsonaro, não têm um discernimento normal, têm problemas psicológicos -Bolsonaro é como o mestre deles- então, certos votantes que moram no exterior, têm um pouco de vergonha. Tudo o que esse governo faz é tão aberrante que, mesmo se não se arrependeram, eles não vão falar muito e vão ficar na deles. E tem muitos brasileiros que não estão nem aí ; o Brasil votou e agora que se dane. Eu passei por um período assim « que se dane » -cada país tem o governo que merece. Não foi uma ditadura que colocou esse homem no poder, ele não entrou à força, foi o povo que votou e o povo que não votou.

Mas é um povo que estava mal informado, onde o sistema de educação ainda não chega a todos de forma eficaz ?

Exactamente. Desinformação, falta de educação, falta de cultura, crença exacerbada -o Brasil é um país muito católico, muito crente, crê em Deus, tudo é « se Deus quiser », tudo é « até amanhã se Deus quiser », « vá com Deus », essa coisa de « Deus vai ajudar », « foi Deus que quis », então, toda essa palhaçada faz com que o povo Brasileiro acredite que ; ou ele merece o destino que tem ; ou na realidade é porque é assim, não pode ser diferente ; e tem ainda as pessoas que se aproveitam disso, como o Bolsonaro, como os evangelistas, que com essa crença ganham dinheiro, ganham poder. Tudo isso foi uma mistura bombástica que contribuiu para que hoje a gente tenha o Bolsonaro.

Existe também aquela velha história da inocência do PT e dos erros que o PT cometeu. A gente nunca falou realmente do que foi a ditadura, nem sobre a escravatura -a gente fala um pouco do massacre indígina- então tudo isso é pago mais tarde -os que vêm depois da gente, os jovens de hoje, têm que ter ido atrás, ler para poder achar, o que não foi dito facilmente na escola primária -na escola primária na minha época, se falava de índio como se índio fosse preguiçoso, então é muito complicado para esse próprio povo e para as gerações « desinformadas » que vieram depois. Se está pagando muito caro essa desinformação, da qual, o discurso de Bolsonaro faz parte.

Visto este contexto que acabou de descrever, quais são as formas de luta possíveis para tentar inverter este estado de coisas ?

As lutas têm de ser dentro e fora do Brasil. A gente luta, tentando levar um pouco em consideração a quantidade de coisas que vão acontecendo. Quando estamos no exterior e vamos tentar explicar, por exemplo aos franceses, o que está  acontecendo no Brasil -é uma coisa de louco ; por exemplo : existem dias em que saem duas ou três notícias más sobre o Brasil ; no outro dia podem sair notícias ainda piores, algo de completamente surreal. Resumindo : todo o dia é pior, e as más notícias do dia anterior passam a ser irrelevantes.

Então a gente tem a impressão que não tem como explicar nem como traduzir o que está acontecendo. Foram decretados tantos crimes na última reunião minesterial do presidente, que ninguém acredita. Os meus amigos franceses me dizem, « não é possível » -tudo é tão absurdo que vira piada- então tudo isso parece um filme, uma espécie de série, uma desgraça tão desgraçada que acaba virando quotidiano, « virando meme », como se diz no Brasil. Eu pensava que a desgraça da Covid ia passar a ser uma prioridade nacional, mas o governo é tão desgraçado, que a gente fala da pandemia em segundo plano e em nenhum país isso aconteceu. A incompetência e os crimes do governo Bolsonaro são tão grandes, que conseguem ser mais importantes do que a pandemia !

O Brasil está dentro da zona de influência dos EUA, e nós costumamos ver apenas as coisas negativas que este país exporta ou tenta impor, por via da sua política externa, à América Latina, nomeadamente ao Brasil. Como é que o povo brasileiro reagiu às lutas raciais recentemente mediatisadas pelo caso Floyd ? Houve alguma espécie de movimento nas ruas no Brasil contra o racismo ?

Houve sim -foi uma mistura. Essa é uma luta muito importante no Brasil, a luta contra o racismo, que existe há muito tempo e que mistura a cor com o miserável. Essa luta ressurge de forma mais visível com Marielle Franco [vereadora do Rio de Janeiro, activista pelos direitos humanos e LGBT, assassinada em 2018], mas vem já de muito longe. A polícia brasileira é uma das polícias do mundo que mais mata, sobretudo negros, na favela -pobres. O que aconteceu nos EUA deu uma revigorada forte e vontade de sair na rua, mas isso não evitou, que horas depois, acontecessem mortes pela polícia em São Paulo, até crianças, com menos de 18 anos, que são levadas e desaparecem, que são mortas por tiro. Houve mais protestos nas ruas, sim, mas não mudou nada.

“O olho mágico da justiça” de Ailton Santana

Como é que você acha que as coisas podem mudar de forma positiva na sociedade brasileira ?

As coisas só podem mudar se existir muita informação, mas informação que chegue a todos os lados, não só do lado dos racistas, mas também do lado das pessoas que combatem, porque é duro combater o racismo ou apoiar qualquer outra causa, quando se tem ódio, quando se está com raiva, com sangue quente -é muito complicado. Por exemplo : Bolsonaro esteve doente do coronavírus, mas eu vejo que o povo que é contra o Bolsonaro torce por « força covid », para que Bolsonaro caia, para que ele morra de uma vez. Isso quer dizer que o ódio é tão grande, que as pessoas não conseguem mais ser humanas.

Como ser humano com um homem que diz que « vai morrer muita gente mas que isso é a vida » e que « todo o mundo vai morrer um dia » ? Não é complicado que você deseje a uma pessoa que diz isso, que ele não fique bom, que ele caia, que ele desapareça de uma vez. Mas não é com esse ódio que vamos resolver alguma coisa, caso contrário acaba todo o mundo sendo monstruoso !

O medo é que se a coisa se reverter e a gente tomar o poder no lugar dele, que nós façamos a mesma coisa -pois existe muito medo e muito ódio. É por isso que tem de haver uma Educação muito forte, muita leitura e muito debate. Vai ser preciso muita luta, um trabalho árduo de anos. O Brasil perdeu em um ano quase tudo o que cresceu e conquistou com os governos de esquerda. Perdemos também as amizades. O povo estava muito unido -isso acabou. O Bolsonaro conseguiu destruir tudo e instalou um ódio entre todo o mundo : agora é homem contra mulher, mulher contra mulher, homem contra gay, gay contra gay, negro contra branco, branco contra branco, é o Norte contra o Sul, o Sul contra o Centro. É impressionante como este ser humano destruiu tudo, apenas com uma eleição presidencial. Hoje, para conseguir superar este caos, vai ser um trabalho gigantesco.

Para que essa luta seja humanista, não acha que a arte tem um papel importante nesta luta contra o fascismo ?

Absolutamente. A arte foi uma das primeiras coisas que foram atacadas. O ministério da Cultura já não existe, existe uma pasta que fala da cultura. Colocaram pessoas que entram e saem, nesse momento tem um indivíduo que nunca fez nada de excepcional para a cultura e que não tem cultura ele mesmo. A educação passa também pela cultura, mas quem é que hoje em dia pode dizer que « a cultura vai-nos salvar, de uma certa forma», no meio da desgraça ?

Não vê movimentos de artistas, comunidades de artistas alternativos, músicos, pintores, escritores… ?

Tem muitos artistas, mas o artista agora durante a pandemia, está lutando para poder comer, sobreviver e quando você luta para sobreviver, fica difícil pensar em alguma coisa, quando você tem fome e no outro dia não tem como pagar o aluguer, fica complicado. Por tudo isso, é difícil dizer que alguma solução para o país passe pela cultura. O Brasil vai sobreviver a esse Bolsonaro, tudo passa na vida, nada é irremediável, mas não sabemos  como e quando é que vamos sair dessa, nem quantos pedaços vai ser preciso juntar e quanto tempo vai ser preciso para reconstruir tudo o que foi destruido. Apesar da cultura ser preciosa, não sabemos exactamente como responder a todas essas questões.

Acha que o movimento autóctone dos Índios na defesa da Amazónia, terá um papel essencial no renascimento de uma luta e de uma identidade brasileira ?

O que pode ajudar o Brasil hoje, é o que nós temos de mais valoroso aos olhos do mundo e da comunidade internacional ; é a Amazónia, é o povo autóctone. Ricardo Salles, o monstruoso ministro do Meio Ambiente, que nunca foi ecologista na vida, proferiu numa reunião interminesterial que, « vamos aproveitar desse momento de serenidade da Covid-19 para ir passar os bois, para legalizar a exploração das terras indígenas da Amazónia ». Ele continua no governo e a gente sabe que existem líderes de partidos e governos europeus contra o Ricardo Salles, por conta disso.

“Moça Caetana, Morte Caetana” de Ailton Santana, inspirado na poesia de Ariano Suassuna

É isso que talvez consiga fazer com que, fora do Brasil, os líderes mundiais digam, « ah, o que está passando na Amazónia é grave ! », porque o que acontece na economia brasileira só ferra o brasileiro, e não interessa aos outros países, pois cada um lida com os seus problemas nos seus próprios países, mas como é na Amazónia, uma floresta importante para todo o planeta, então é aí que reside alguma esperança, que os líderes estrangeiros possam fazer alguma coisa para ajudar o povo brasileiro.

Mas tendo o Brasil a sua soberania, sendo que o presidente foi eleito ; será sempre muito complicado.

Sim, mas os governos estrangeiros podem boicotar, não ajudar no processo de destruição da floresta. E só assim pode haver alguma esperança que as coisas mudem, mas o povo também tem de ter um papel activo.

Mas você sabe que os boicotes podem privar os brasileiros de alguns bens que não produzem, por exemplo.

Nada se pode ter sem perda. Ele não entrou de força, não foi ditadura, foi o povo que votou, foi o povo. Eu tenho minha família e meus amigos que moram lá e nenhum votou nele, mas é como eles dizem, temos de reagir e tem de haver danos, porque o que ele está fazendo é muito pior. Com Bolsonaro é um descaso ; ele não fala em nenhum momento da Covid. No dia em que o Brasil atingiu 65 mil mortes devido à pandemia, ele organizou uma festinha e foi comemorar o « Independance day » americano, o dia da independência dos EUA. Não teve uma palavra sobre os mortos brasileiros e foi comemorar um evento relacionado com um país estrangeiro.

Não se tem na História do Brasil, mesmo na época da ditadura militar, um governo de lambe botas, com complexo de vira lata, endeusando os EUA e o tão patético quanto ele, o Donald Trump -até parece uma competição de aberração entre Bolsonaro e Trump. Então eu boicoto, não compro nenhum produto brasileiro e digo a quem puder para não comprar, porque só assim ; é ferrar a economia para que o governo se ferre. Para que o Brasil não caia na desgraça completa, Bolsonaro tem de sair o mais rápido possível.

Você percebe que no contexto internacional, os países ocidentais já estão a bloquear vários países por razões idelógicas, embora eles não o assumam ; temos os casos da Venezuela e de Cuba, sendo que alguns sectores da esquerda internacional não estão de acordo que esses bloqueios existam. Como defender um bloqueio ao Brasil neste contexto ?

É de facto muito delicado falar de bloqueio. Você pensa no bloqueio que está sendo feito em Cuba durante todo este tempo e não foi por isso que o governo caiu. Mas a gente sabe que este tipo de bloqueio sempre veio dos EUA. Mas no caso particular do Brasil, é uma situação super clara. A esquerda nem precisa de fazer nada, pois Bolsonaro se destroi a ele mesmo, assim que abre a boca, exactamente como o Donald Trump -eles são a desgraça em seus países e são a sua própria desgraça.

“Dois pesos e duas medidas” de Ailton Santana

E acha que Bolsonaro vai ser destituído, pode haver impeachment ?

Enquanto a maioria da população não for para a rua, isso não vai acontecer. Ele já comprou, dando milhões de reais a deputados do chamado « centrão » -deputados muito corruptos, que se vendem facilmente ao governo, em troca de dinheiro ou cargos em ministérios, quando este quer se safar, para fazer passar alguma lei ou medidas de governo. Então, se esses deputados do centrão continuarem a ser pagos pelo Bolsonaro, o impeachment não acontece. Se a maioria da população vir que as pesquisas / sondagens são desfavoráveis para Bolsonaro, com menos de 30 % -pois foi este jogo que a grande « mídia » fez contra a Dilma Rousseff no passado-, então o Bolsonaro pode cair. Mas não vejo actualmente o Brasil suportar um processo de impeachment com essa pandemia. Ou ele sai por si ou então ele sai destituído por crimes de irresponsabilidade -ele comete muitos crimes de irresponsabilidade.

E acha, que sendo Bolsonaro tão irresponsável, os militares que o apoiam, o podem deixar cair ?

Apesar de Bolsonaro ter colocado muito militar no poder, a coisa está crítica para o lado dele. A sua família tem ligações com a milícia do Rio de Janeiro, que por sua vez está relacionada com a morte de Marielle Franco -existem já muitas provas sobre este caso e não sei o que é que falta para que seja apurado quem foi o mandante deste crime. Desvio de dinheiro público, propina / luvas, foi descoberto um carregamento de cocaína no avião presidencial. É muita coisa para que o governo se possa segurar. Não acredito em impeachment, pois se fosse possível já teria sido enunciado pelo Supremo Tribunal Federal. Ele foi eleito pela democracia, mas quer que essa democracia não exista mais e quer destituir o Congresso, que de certa forma cometeu muito erro e deixou as coisas chegarem onde chegaram -mas é esta instituição que pode fazê-lo cair.

Como ele não quer cair, as instituições estão em risco, daí ele querer destituir o Congresso e destruir todas as instituições democráticas.

Exactamente. Então é uma queda-de-braço / braço-de-ferro. Ele não tem tanto apoiador assim, não. Existem muitos robots nas redes sociais, ligados a uma máfia das fake news, que fez com que Bolsonaro fosse eleito, um pouco como Donald Trump em 2016. E os que criam esses robots são pagos para dar a impressão que o governo é muito forte, o que não é. A gente vê pelos movimentos das pessoas pró Bolsonaro que vão nas ruas, são realmente quatro gatos pingados mas muito barulhentos.

Por falar em barulho e manifestações ; você já vive em França há mais de vinte anos : como analisa o momento político e social em França, talvez comparando as coisas com o que se passa no Brasil e com o que chamamos hoje em dia de globalização.

Eu passo muito tempo me dedicando a causas brasileiras e sinto alguma culpa por, estando na França há mais de vinte anos, não conseguir desligar disso. Mas sinto vontade de entrar um pouco mais na política e no quotidiano político francês, pois é aqui onde eu vivo, onde eu trabalho, os meus filhos são franceses, uma boa parte dos meus amigos -a minha vida é aqui.

Aqui há uns anos eu me interessava bastante pela política francesa, sobretudo quando aconteceu a eliminação da esquerda das presidenciais de 2002, com a subida da extrema direita -aliás, a França esteve por duas vezes  bem perto de eleger a extrema direita e a única coisa que me faz medo actualmente, é toda essa população que é contra Emmanuel Macron, que vai votar contra, indo às urnas com ódio, exactamente como aconteceu no Brasil, onde as pessoas foram às urnas com raiva, com muito ódio, querendo combater alguém de quem não gostavam e aí eles votaram no que tinha de pior e é isso que eu tenho medo que aconteça na França, é que as pessoas votem no que há de pior, porque estão com raiva do governo.

O facto de não votar no primeiro turno / primeira volta e deixar mais para ir votar no segundo turno, é um erro monumental, porque no segundo não se tem mais escolha e foi o que aconteceu no Brasil -as pessoas que não votaram, elas ajudaram a eleger o monstro e é isso que pode acontecer aqui em França. Então a gente tem que acreditar desde o início e temos que votar na pessoa da nossa preferência, não pelo ódio, não para votar contra e foi exactamente o que disse Lula aquando da cerimónia de atribuição da distinção de cidadão honorário de Paris [2 de Março de 2020], na qual estive presente -ele disse algo de muito importante : « não se vai às urnas com ódio, se vai às urnas com esperança ». Isso para dizer que é no primeiro turno que se vota ; se você acredita nos ecologistas, tem que votar na ecologia, tem que ir lá, mesmo se está um dia maravilhoso -mas eu vou votar porque eu tenho que votar hoje, não tem um amanhã ! Amanhã tem sol, mas amanhã não tem eleição !

Nós somos responsáveis pelo governo que a gente tem, sobretudo as pessoas que não votam porque dizem que nenhum candidato presta. « Nenhum presta ? Se alguém acredita que pode fazer melhor, então vá se candidatar » ; se você acredita que pode ir na rua e dar a sua opinião, a gente tem que ir. O que a gente não pode « é só falar » e dizer que o mundo está feio, etc. Se eu acho que o governo não presta, então eu vou votar por uma alternativa em que acredito. O que me dá muita esperança, é essa vaga verde e essa vaga feminista que surgiu em muitas cidades nas eleições municipais francesas. Talvez seja utópico, mas eu começo a acreditar que é possível que as coisas podem melhorar e sair desse esquema de Macron, de direita.

Não teme que a vaga verde seja mais ou menos como a vaga do Macron que afirmou não ser nem de esquerda nem de direita e que agora governa à direita, mantendo um conservatismo que impede as coisas de mudarem no bom sentido ?

Sim, tenho algum receio, mas prefiro acreditar, porque senão não se pode viver -como acreditar em algo, se a gente acredita que das pessoas que a gente espera alguma coisa, também não vai resultar em nada ?

E acha que pode haver verdadeira ecologia sem haver um movimento social forte ?

Não. Uma coisa é ligada à outra. A ecologia não pode ser radical e deve estar ligada aos movimentos sociais.

Eu vi um desses memes que vão circulando nas redes sociais de que «A ecologia sem social é jardinagem » [expressão que deriva da frase enunciada pelo sindicalista e ecologista brasileiro Chico Mendes, assassinado em 1988 : « ambientalismo sem luta de classes é jardinagem » -NdPC].

[Risos] Sim, não se pode desligar a necessidade ecológica da necessidade social. Eu sei que o Lula não poderia ter feito nada se ele se tivesse radicalisado ; se ele não tivesse aberto as portas para além dos seus ideais, discutindo com todo o mundo, ele não teria conseguido melhorar a vida das pessoas do jeito que ele melhorou. O mundo é de todo o mundo, então você tem que compor, uns com os outros, com a natureza, e a gente viu com a pandemia, como o mundo parou de uma maneira extraordinária, -foi incrível como a gente podia ouvir coisas que a gente não ouvia habitualmente, pássaros, sons, que a gente nem sabia que existiam.

Eu deixei de escrever neste último ano, talvez porque me tenha dedicado mais à música, mas na minha fase de escrever artigos e traduzir peças de outros autores e jornalistas, acompanhava com muita atenção tudo o que acontecia a nível político e económico no Brasil e em França, que é o país onde vivo. Observei a ascensão de Bolsonaro, e acho que ele é mesmo incompetente, com falta de cultura, como você muito bem disse. No entanto, não vejo muitas diferenças práticas entre ele e o Macron.

“Moça Caetana” de Ailton Santana

Macron sabe o que está a fazer mas no fim de contas, os dois seguem o mesmo caminho. Como é que eu vi isso ? Quando houve a reforma das pensões de aposentadoria, apresentada pelo ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes. O Emmanuel Macron anunciou o mesmo tipo de reformas no sistema francês de pensões, com a introdução de um novo sistema de pontos, subjugado às seguradoras, aos bancos. Vejo toda uma série de medidas que estão a ser implementadas em vários países, com governos aparentemente diferentes, mas que no fundo estão todos a ir no mesmo sentido ; com incompetentes ou com gente que aparenta ser competente -e é isto que me está realmente a preocupar.

Sim, o Macron faz passar todas essas políticas com o que a gente chama, a elegância francesa. A coisa interessante que você está dizendo, é que no Brasil os média / a mídia, participa nisso activamente e é a mesma coisa na França, onde você não vê uma crítica profunda contra o governo -é o povo que vai na rua. Mas a diferença entre o Brasil e aqui na França, é que os franceses vão muito para a rua, nenhuma mudança passa despercebida, a população é bem mais informada aqui na França.

Vão muito para a rua e por isso a repressão policial em França nunca foi tão grande como agora, sobretudo contra os movimentos sociais. E falando dessas coisas ; como é que você viu o movimento dos Coletes Amarelos [CA] ?

No início eu tive muito medo, porque foi tudo mais ou menos ao mesmo tempo que Bolsonaro ganhou as eleições. Eu liguei esse movimento dos CA ao movimento que teve em São Paulo  em 2013, contra o aumento do ônibus -então o povo foi para a rua. O aumento do ônibus não tinha nada a ver com a Dilma Rousseff, na época. E o movimento foi crescendo bastante. Quando a Dilma Rousseff ganhou o segundo mandato presidencial em 2014, o seu apositor Aécio Neves, não deu os parabéns, afirmando simplesmente, que a Dilma não iria governar e que « nós não a deixaremos governar ». A partir daí, quase nenhum projecto de governo  foi aprovado. Então, muita coisa foi barrada no segundo mandato da Dilma. E no seguimento do crescimento da contestação contra o aumento do ônibus, o movimento começou a virar « fora Dilma ». Este movimento era constituído pela clase alta e pela classe média brasileira, com slogans do tipo, « quero poder ir de férias para a Disney ». Virou uma coisa meio estranha, com patrões na rua e alguns pobres que veneram patrões, que se juntaram a eles nesse movimento.

Apareceu também nessa altura um movimento de jovens, que iam para a rua e que diziam que não tinham partido -hoje a gente sabe que tinham partido. E essa gente da direita e da extrema direita, tomaram conta das manifestações, dizendo que era um movimento apartidário. Eles conseguiram, ao aparecerem frequentemente na mídia, fazer com que o índice de popularidade da Dilma Rousseff descesse abaixo dos 30 %, sendo a sua imagem política parcialmente destruída. Do que eu tinha medo, era que havia coisas semelhantes em França, com alguns fenómenos de racismo associado.

Você ouviu mesmo CA com essas ideias ou ouviu isso nos média ?

Eu acho que teve as duas coisas. Porque eu conheço um amigo homossexual que teve um problema de descriminação com os CA, para além de outras pessoas que me falaram de incidentes semelhantes. E depois houve uma amiga que me disse de ir com ela ver os CA ; e eu perguntei para ela se o movimento era de extrema direita, ao que ela me respondeu que existiam alguns elementos desinformados, mas que ela e outros como ela falavam com eles a tentar explicar algumas coisas.

Antes de ir com ela, vi um filme seguido de um debate com o Juan Branco, um dos advogados de Julian Assange, e eu perguntei para ele quem é que fazia parte desse movimento, falando desse meu receio sobre a extrema direita. E, apesar de ele dizer que havia um pouco de tudo, com muita gente revoltada, ele foi bastante claro a afirmar que o movimento dos CA não é de extrema direita. Foi muito interessante o que ele explicou, e depois de esse dia eu fiquei muito mais à vontade, apesar de ver no movimento, muita bandeira da França passando aqui em Bordéus. E no fim do debate, um dos elementos dos CA, veio falar comigo dizendo, « venha com a gente à próxima manifestação », e que esse tipo de incidentes aconteciam sobretudo em pequenas cidades, mas que nas grandes cidades, com grandes manifestações, esse tipo de problema não existia, com gente informada e que sabe o que está fazendo. Foi nesse momento que comecei a ter menos medo, porque anteriormente pensava que se a extrema direita começa a entrar no movimento, as coisas vão terminar como no Brasil. Esse era o meu maior receio.

Mas você não via uma diferença social entre os movimentos de descontentamento  no Brasil contra a Dilma, e os CA em França ? Você me falou que no Brasil, era sobretudo gente da classe média e alta manifestando ; você viu esse tipo de pessoas manifestar com os CA em França ?

Não, de forma alguma. E vi muita gente dos CA, que quando viam alguma placa / cartaz descriminatório, iam falar com essa pessoa e dizer que não queriam esse tipo de cartaz na manifestação -isso para mim foi importante. E tal como você disse, que é muito importante seguir o que é que a grande mídia está dizendo, por vezes com fake news.

Você sabe que num verdadeiro movimento popular [tal como os CA] está lá toda a gente, reunindo todas as tendências políticas, incluindo gente sem tendência. O que leva os média a aproveitar o que querem para descredibilzar o movimento e manipular a opinião pública.

Exactamente. Nós temos que admitir que em qualquer movimento existe sempre gente que não tem acesso à informação como um todo. É como dizer que não gosto de uma peça de teatro que não fui ver. Você precisa de ir ver, de aprofundar o seu conhecimento sobre uma matéria, para poder ter uma opinião com fundamento. O que é triste, é que eu vejo pessoas nas redes sociais, que nunca vão votar na extrema direita, e que sem se dar conta, acabam por veicular ideias da extrema direita. Eu vi muito disso neste caso do Flyod nos EUA, em que uma pessoa estava divulgando algo que, por ser muito impactante, e partilhou nas redes uma informação falsa. E eu perguntei para ele « você viu de onde veio essa informação ? Olhe que as coisas não aconteceram bem assim -essa informação é falsa ».

A nossa conversa já vai longa, com mais de uma hora. Foi com muito gosto que recolhi o seu riquíssimo testemunho. Coragem para si nestes tempos extremamente difíceis para quem trabalha com Arte.

Sim é verdade. De certeza que a entrevista vai ser muito útil para ajudar a perceber o que está acontecendo no Brasil mas minha última mensagem será para falar do meu maior combate hoje, que é o movimento que lancei juntamente com outras mulheres brasileiras para a legalização do aborto no Brasil, O movimento EU FIZ. Estamos pesquisando, fazendo vídeos de mulheres que praticaram abortos clandestinos no Brasil, que arriscaram suas vidas, faremos um documentário, « HIPOCRISIA » com histórias de várias mulheres.

“Frida Resistência” de Ailton Santana

Essa luta é p’ra mim hoje, uma das maiores lutas de minha vida, mostrar que EU FIZ aborto clandestino e como eu milhões de mulheres também fizeram e muitas morreram. O Brasil é um dos países onde ocorre o maior número de abortos clandestinos no mundo. Nossa mensagem é : Chega de HIPOCRISIA, EU SOU A FAVOR DA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL.

Muito obrigada Paulo.

Angélica de Almeida é a oitava filha de uma família, e como todo brasileiro, com misturas indíginas, italiana, etc. Nasceu na pequena cidade de Guaramiranga, no Estado do Ceará. Estudou letras e fez o Conservatório de Artes Dramáticas [CAD] na Universidade do Estado do Ceará, Fortaleza. Expatriada em Bordéus na França, trabalha como actriz em duas companhias de teatro [“Compagnie LEA” e “Arts Scèniques Talençais”] e é também professora de teatro [“Théâtre en Miettes” desde 2000 e “Divers Sens”]. Participa como actriz na curta metragem “Héritières” de Lauranne Simpère, produzido por “Douze Films”, que será exibido em 2021.

Ailton Santana é um artista plástico brasileiro que nasceu e vive em Correntes, no Estado de Pernambuco. Ele  trabalha no seu atelier de pintura “Nômade”, onde organiza mostras e oficinas de arte visual, dirigidas sobretudo a crianças e jovens, funcionando também como um polo de intercâmbio de artistas nacionais e internacionais. Sua arte é considerada por vários críticos, uma junção de estilos como naif, pop, conceptual, surreal e arte abstrata. Conta com mais de 45 exposições no estrangeiro, em países como a França [Fórum das Artes & da Cultura em Talence, dezembro de 2018], Suiça e Marrocos. Foi premiado em 2015 com o título de “Patrimônio vivo material e imaterial do município de Correntes”.

Paulo Correia é um ex-geólogo petrolífero nascido em Coimbra, Portugal. Vive em França na região de Bordéus, onde compõe suas canções, escreve suas crónicas, ensina português e cultiva seus legumes. Militante Insubmisso francês e Comunista português.

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